O QUE QUER A ALMA ATRAVÉS DO MITO DE ORFEU E EURÍDICE? (A ALMA COMO SIZÍGIA)
Renato Santiago Bandola de Oliveira*
Sônia Marchi de Carvalho**
INTRODUÇÃO
Apenas um empobrecimento sem precedentes do simbolismo poderia nos permitir redescobrir os deuses como fatores psíquicos, isto é, como arquétipos do inconsciente
(JUNG, 2013, par.51)
Este artigo objetivou realizar uma leitura psicológica do mito de Orfeu e Eurídice, entendendo como psicológico a visão pós-junguiana de Wolfgang Giegerich, analista e professor contemporâneo que elevou a noção de alma de Jung a outro status ao radicalizar a mesma.
Para isso, primeiramente será discutido o que se entende por arquétipo contrapondo a visão estética da visão psicológica do mesmo. Caminhando para a noção de alma, poderemos relatar o mito no desabrochar de sua própria verdade intrínseca que procura o tempo todo se explicitar.
Neste sentido nos cabe perguntar: “Quando falamos de mitologia, até que ponto a utilização desta representa de forma rigorosa uma descrição psicológica de uma dada situação vivencial? O que fala no e através do mito?”. A realidade mítica nos permite lidar com “imagens mortas”, categorias racionais humanas, que por serem universais descrevem as vivências arquetípicas se tornando um ponto entre o passado e o presente, uma categoria que engloba consciente e inconsciente. Até onde se olha para os opostos como uma matéria prima para se explicar um fenômeno (similitude, leitura alegórica do mito), ou até que ponto este par de opostos milenar pode ser lido atualmente da mesma forma que nos mistérios de Elêusis?
O mitólogo, psicólogo ou esteta irão se apropriar desta narrativa, cada um de uma determinada forma. No artigo de Gialdroni[1] por exemplo, “Orfeu refletido ou a negação do mito?”, este, parte do pressuposto de que as leituras estéticas realizadas tendo Orfeu e Eurídice não representam, verdadeiras releituras condizentes com a intensidade da experiência do relato mítico. Ele parte do pressuposto que a banalização da vivência arquetípica acaba por ser a causa da perda do fascínio pela imagem, transformando o mito em uma historieta.
Múltiplas são as leituras realizadas deste par sizígico[1], mas tendo em vista sempre uma releitura que opera um processo de substituição interpretativa do mito, onde o mito já não significa o que ele mesmo quer narrar. Para Gialdroni (2009) transformar o mito em uma historieta – o que as demais releituras estéticas fazem – significa retirar do mesmo seu atributo “arquetípico”, sendo intrínseco a este atributo a experiência do cruzamento do limiar, ou processo de iniciação.
ARQUÉTIPO E MITO
A princípio o que se observa na exposição de Gialdroni é uma concepção de mito e principalmente da qualidade arquetípica da imagem. Quando o autor realiza uma observação do Orfeu de Magris, pressupõe que o mito atualmente ainda possui um caráter vivo, ou seu caráter numinoso é o que qualifica um arquétipo. Assim há uma identificação entre mito, arquétipo e numinoso.
Ao realizar uma crítica literária o autor se remete a conceitos da psicologia, que não tem a ver intrinsecamente a vivências estéticas. Quando se confunde expressão com mito vivo, ou ainda atribui a característica de arquetípico, já não temos um mito vivo. Segundo Giegerich (2005, p. 2), paradoxalmente é o fato de o mito ter sido abstraído de seu contexto histórico original, como narrativa que se tornou morto e por isso universalizado e confiscado em sua natureza como um mito vivo. “O mito ipso facto foi reduzido a ‘literatura’. Agora temos certas histórias (...) O próprio mito já morreu, é uma antiguidade” (GIEGERICH, 2005). Deste modo não estamos mais imersos no “oceano do conhecimento mítico”.
“O novo status de consciência dissolveu o imediatismo que caracterizava o modo mítico de estar-no-mundo” (GIEGERICH, 2015, p. 6). Mas o que se espera da experiência estética não é mais um arrebatamento, característico dos cultos religiosos atuais, onde se embriaga com o êxtase, pelo êxtase, do que propriamente pelo significado. Atualmente o mito se tornou arquétipo do inconsciente coletivo, ou seja, formas esvaziadas.
Marie-Louise Von Franz (1994, p. 45) já nos apresenta a noção de arquétipo em Jung integrando em si mente e matéria. Deste modo quanto mais material o fenômeno, mais espiritual abstrato e quanto mais espiritual-abstrato, mais material, ou seja, já possui em si sua característica abstrata:
“Em seu ‘Sincronicidade’ Jung designou o número não apenas como manifestação primeira da mente ou espírito, mas também como a qualidade inalterável da matéria. Quando todas as suas outras propriedades e características como massa, cor, consistência, e assim por diante, tenham sido subtraídas, ele diz, o aspecto numérico permanece como o mais primitivo e básico elemento”.
Giegerich (2005) aponta que a mente se desprendeu da experiência imediata sensual-imaginal onde a consciência se tornou consciente de si mesma (consciência razoável), de mythos para logos. Ou seja, a realidade mítica onde o sujeito vivia em participação mística com o mundo já não existe, pelo menos da mesma forma que anteriormente, hoje ideias se tornaram literalizadas e não mais imagens. O autor nos propõe que para que pudéssemos olhar para o mito como uma narrativa, uma história, foi preciso que antes houvesse a possibilidade de se desprender da imagem na constituição da mente como aquela que irá mediar a experiência com o mundo.
Se é possível recorrer ao mito é porque há a intuição de algo de familiar naquilo que é antigo e se é possível esta distinção, foi porque antes a mente se separou da natureza e a imagem passou a ser um referente de si mesma enquanto abstração. A qualidade arquetípica da imagem de Orfeu nos permite refletir alguns temas que a meu ver se tornam “lugar comum” nos empreendimentos estéticos, como a relação com o “outro da alma” se constituindo assim como uma Sizígia nos pontos culminantes da narrativa da separação e união, porém tal sizígia não consegue se expressar efetivamente.
A NOÇÃO DE ALMA E ALMA COMO NOÇÃO
Para realizar uma leitura psicológica do mito, primeiramente é importante nos deter na concepção de psique ou alma dentro do que se compreende como psicológico. Giegerich (2021, p. 71) irá dizer que dentro da história do ocidente, Jung foi aquele que efetivamente detinha uma noção de alma constituída quando se separou de Freud.
A escolha deste autor por Jung se deu a partir da posição de Karl Kereny que via Jung como o psicólogo que se destacou em sua época por acreditar na alma como uma realidade. Porém a qual realidade falamos? Giegerich (2021) aponta que “Real” não é a mesma coisa que verdadeira. Aponta na verdade para uma independência da Noção, se comporta como um tipo de subjetividade própria sendo um Conceito “vivo” (Ibid). Neste sentido Jung possuía uma real Noção de alma porque fora tocado e apreendido por ela.
“E por ele ter sido tocado e apreendido por ela, ele tinha uma compreensão, um Begriff, uma Noção dela e podia apreende-la (...) A Noção viva que nos interessa aqui é a unidade dialética de ‘ser agarrado’ e de ‘apreender’, de begriffen sein e begreifen” (p. 75).
A arché (origem) de Jung fora sua concepção de alma, pois o ter sido tocado não significa ter sido carregado a moda de um profeta, tornando-se, portanto, um porta-voz como aconteceu com Freud e a sexualidade, mas muito mais, Jung fora tocado por uma Noção racional de alma a ponto de compreender sua realidade inalienável como um movimento independente que dialeticamente retorna transformando a própria visão que se tinha da realidade, agora uma “realidade psíquica”.
A SIZÍGIA DE ORFEU E EURÍDICE OU A INTERPRETAÇÃO (PSICO) LÓGICA DO MITO
Segundo Brandão (1987, p. 141), Orfeu, do grego (Orpheus) é tido como aquele que desce as trevas do Hades (orphnós) que significa o “obscuro” (Órphné), “obscuridade”, que tem a mesma etimologia de órfão. É um personagem da mitologia grega filho de Calíope, mulher do rei Eagro e uma das musas relacionada ao canto.
No mito o apicultor Aristeu, tentou violar a esposa de Orfeu, Eurídice, que ao fugir pisou em uma serpente que picou seu pé lhe trazendo a morte. Assim Eurídice vai para o mundo inferior e Orfeu ao saber do ocorrido, resolve buscá-la no reino de Hades e Perséfone.
Assim se utiliza de sua música para vencer todos os obstáculos que se apresentavam. Dentre estes desafios Orfeu se depara com a bifurcação do mundo inferior, onde deveria escolher e identificar uma das duas fontes, se escolhesse o caminho correto, ou seja, a fonte de Menemósine[1] não iria se esquecer de quem era, interrompendo o fluxo das existências, pois, quem não se lembrasse estaria destinado a viver “outra” vida.
Orfeu toma da água da memória e continua seu caminho até vencer Cérbero e os três juízes com sua música. Quando toca sua melodia para Hades e Perséfone, este resolve libertar Eurídice com a condição de que o herói não olhasse para trás até que cruzasse o limiar entre o mundo dos vivos e dos mortos. Ele lhe seguiria a frente e ela lhe acompanharia os passos, mas ao se defrontar com as trevas, ou pensasse o que pensasse, Orfeu não deveria olhar para trás enquanto o casal não transpusesse o reino das sombras. Porém em um assalto no momento culminante Orfeu olha para trás e observa Eurídice se perdendo nas sombras, “...morrendo pela segunda vez” (BRANDÃO, 1987, p. 142).
Ao retornar ao mundo da superfície Orfeu desconsolado resolve fundar uma religião de mistérios de Dioniso, onde instituiu que somente homens poderiam participar. Estes deveriam deixar suas armas do lado de fora e assim as Mênades se apoderaram das armas destes e os despedaçam quando saiam do templo. Outra versão deste despedaçamento relata que após servir de árbitro em uma querela entre Afrodite e Perséfone, Calíope, mãe do herói, gera certo ressentimento após decidir que Adônis ficaria um tempo com uma e um tempo com outra, assim o desmembramento de Orfeu tem como motivação uma paixão violenta das mulheres pelo poeta, todas querendo-o ao mesmo tempo a ponto de esquarteja-lo.
Assim sua cabeça rolou para o rio Hebro fazendo com que os deuses se enfurecessem e devastassem as terras com uma grande peste, exigindo para que esta findasse a cabeça de Orfeu. Esta, fora encontrada por alguns pescadores que erigiram um templo em homenagem ao herói onde era vedada a entrada de mulheres. A cabeça sagrada passou a servir de oráculo (BRANDÃO, 1987, p. 143).
Para nos propormos a uma leitura psicológica do mito, antes é preciso que se suspenda toda e qualquer afirmação anterior ao que é a realidade do mito para que a alma possa expressar-se e desabrochar em sua verdade por e através do mito. Ainda que todos os eventos de um mito aconteçam em uma sequência narrativa, Giegerich (2001, p. 104) nos alerta a respeito da distinção de uma leitura alegórica do mito e uma tautológica. A primeira, descreve os eventos, como se cada momento fosse diferente dos outros e estivessem fora, como a busca por uma similitude, por isso Orfeu passa a ganhar vários significados contraditórios com a narrativa. A segunda forma de leitura é tautológica, ou seja, o dado de que apesar de imaginarmos as coisas separadamente, elas dizem de uma e mesma coisa existente internamente ao mito.
Deste modo não é sobre as pessoas e suas vidas individuais, mas sobre os vários momentos de uma mesma verdade arquetípica, da vida lógica da alma. Assim uma imagem, ou um sonho ou um mito devem ser interpretados a partir da premissa de que seu sentido é autocontido, completo em si mesmo, só precisa desabrochar: “Acima de tudo, não deixe nada de fora que não pertença, pois, a imagem de fantasia tem em si tudo o que precisa” (JUNG apud GIEGERICH, 2001, p. 102).
Este talvez seja o ponto central da psicologia de Jung a qual Giegerich irá valorizar e enaltecer. A constatação de que não há nada fora da alma, não há um ponto arquimediano fora da própria alma para que possamos observá-la, pois não há um fora, ao mesmo tempo a imagem ou o sonho já tem tudo o que precisa dentro de si para expressar a si mesmo, porém é preciso que acompanhemos o movimento da própria imagem em seus momentos de intensidade, quando ela se dobra sobre si e a partir destas negações que imprime a si mesma, se determina inaugurando uma nova perspectiva.
O mito de Orfeu começa com a morte de Eurídice (Euro=amplo + Diké=destinação), esta tenta fugir de Aristeu, o apicultor filho de Zeus com Cirene. Aristeu fora considerado um deus agrário que zela pelos pastores e rebanhos, tendo o epíteto de “Nômios”, protetor dos pastores. Também é tido como um deus protetor dos marinheiros e viajantes na figura zoomórfica do delfim (golfinho). Após a morte de Eurídice em que esta foge da tentativa de estupro, as ninfas em sua fúria acabam com as abelhas do mundo, ao que Aristeu procura Cirene, sua mãe, que o indica para o sábio Proteu que lhe ajuda a restaurar a ordem e voltar a ser um apicultor (BRANDÃO, 1987, p. 85).
No panteão grego, o metron, ou a medida de todas as coisas não deveria ser quebrada implicando punição pelas fúrias, uma Harmatia (transgressão). A morte de Eurídice desemboca na impossibilidade da realização da sua Diké, ou seja, da destinação de cada vida individual. Assim é um acontecimento que foge do esperado, se tornando uma forma de desequilíbrio do cosmos. Aristeu deve fazer libações por nove dias em homenagem a Orfeu e Eurídice, para ter de volta suas abelhas e colméias, pois é destituído de sua própria destinação, ser um Apicultor.
A intencionalidade presente na história é a busca por este “outro” perdido, a alma já está no reino dos mortos, sendo esta sua primeira determinação, estar perdida de Orfeu. Dentro desta determinação, podemos observar que a alma se situa de início no reino da pré-existência, sendo a busca pela alma a realização de um acontecimento não natural (contra natura), uma harmatia, uma transgressão do metron. A busca pela alma já é em si um trabalho não natural que é acompanhada pela perda da Diké, ou destinação e propósito de cada um. Deste modo é uma primeira autocontradição, ou seja, a busca da alma perdida é um evento não natural, a natureza da alma é uma forma de não-natureza.
A “perda da alma” é constituição, ou seja, se situa no reino da “pré-existência”, sendo esta a primeira transgressão. “A palavra transgressão expressa só a chocante e surpreendente característica desse momento arquetípico da alma conhecendo a si mesma na matança [ou em sua perda” (GIEGERICH, 2001, p. 203). A alma já começa perdida, por ser de sua natureza nada-ser, ela não é algo que exista, já se inicia em outro nível.
A catabase de Orfeu, ou sua descida e cruzamento do limiar é realizada a partir de sua capacidade de inebriar, encantar, atrair e emocionar todo aquele que cruze seu caminho. A partir disso podemos compreender que tal descida faz parte do cruzamento do limiar, como um processo de interiorização e reflexão da própria alma, onde saímos da perspectiva empírica e extensiva da vida com a alma se perdendo. No reino dos mortos tudo é “translúcido”, efêmero e com contornos difíceis de identificar. É o limiar do visível-invisível, do interior-exterior, do finito-infinito e da existência-pré-existência, o que os gnósticos chamavam de Pleroma.
Na verdade, falamos de uma e mesma coisa em seus dois momentos, onde para fascinar é preciso estar entregue a sujeição ao invisível e infinito (ausência de limiares), que realiza, através do encantamento a mesma dissolução dos limiares criando/revelando um momento outro de encantamento. O fascínio do reencontro com a alma que encanta, paradoxalmente é informado por sua constante ausência e perda que anima a inspiração, não há aqui um antes e depois, mas um único acontecimento. A presença ausente da alma através do seu encantamento, ou a inauguração de um momento outro através daquilo que está sempre presente como perdido, esvanecido. Aqui inaugura-se outra autocontradição, onde para encontrar a alma é preciso se sujeitar a própria perda de limiares, cruzar o limiar é perder-se dos mesmos e somente ao perder-se Orfeu encanta, fascina este outro.
Ao efetuar o retorno a superfície o “olhar para trás” aqui especificado, pode ser compreendido como um “estar sujeito a” tudo aquilo que “não se pode ver”, ao “estar perdido” para poder encontrar o mundo dos vivos. É a total e irrestrita confiança nos passos que o perseguem atrás de si, o invisível. Hades propõe uma verdadeira charada, pois aqui a contradição se torna evidente, Orfeu terá que se orientar onde é constitutivo estar perdido, estar em um “lugar-sem-lugar”. Como utilizar as categorias espaço temporais (finitas) para se orientar na eternidade (infinito)?
Na medida em que Orfeu sonda o mundo dos mortos e o encanta e “domina” com sua música, ele é obscurecido e dissolvido, origem etimológica de seu nome. Olhar para trás não pode ser compreendido de forma literal, mas sim lógica. A “segunda morte” de Eurídice é a própria suspensão da alma enquanto negatividade lógica. Orfeu não somente “olha para trás”, mas ele mata Eurídice em sua dimensão semântica.
No texto de Greg Mogenson citando Giegerich (2016, p. 22) este nos aponta a mesma questão no episódio das tentações de Cristo no deserto, onde o mesmo é confrontado com uma dualidade entre o “pão” e o “reino”, um sentido lógico interior e um exterior e literal. “Ao invés de rejeitar o ‘reino’ por completo e optar por algo totalmente diferente, Jesus o empurra e nega, sublima, destila, evapora o conceito de ‘reino’” quando se refere ao seu reino como não sendo deste mundo, Jesus suspende a noção de Reino quando a separa da de mundo, Ele cria um limiar ao mesmo tempo em que o transpõe. O Reino está em todos os lugares e em lugar nenhum.
Ao “olhar para trás”, a perda da alma por Orfeu é na verdade a negação que própria alma imprime sobre si, para que possa ser reconquistada. O momento em que Orfeu olha a alma, sua perda é a suspenção da mesma em sua negatividade lógica, “sua alma não é deste mundo”. São dois momentos de uma única verdade onde a alma cria seu outro para perder-se e se constituir em sua negatividade como presença ausente. “Olhar para trás” ou “perder-se” do outro é ao mesmo tempo um empurrar a alma para o plano da não existência, sublimando e universalizando-a, para que assim esta possa se constituir através-de todo e qualquer fenômeno, estando em todos os lugares e em lugar nenhum.
Para encontrar ao outro é preciso que se perca, mas tal perda é o momento negativo do próprio encontro. O encontro só se torna possível quando Orfeu se destitui da intenção de buscar no ato de “olhar para trás”, ele desiste, assumindo assim a própria perda. O momento em que Orfeu “olha para trás” ele se defronta com a presença da alma em sua ausência, em sua obsolescência. “Olhar para trás” é o ato de matar a alma criando o próprio limiar entre interioridade e exterioridade, mundo empírico e mundo pré-existente. Por isso Orfeu nunca poderá encontrá-la a nível semântico.
Devolvê-la ao mundo dos mortos, se constitui no mito como a violação de um tabu. “Como se morre estando morto?”. Aqui se insere uma negação da negação da morte, ou seja – “não se mata o que não pode morrer”, mas ao se matar pela segunda vez – “mata-se o que não pode morrer”, negação da negação, onde na verdade representa o ato de suspensão da alma enquanto negatividade lógica. A alma não morre porque sequer ela existe. Mas isso só se torna explícito em sua absurdidade. É absurdo ser movido por algo que inexiste. Deste modo ela inaugura a passagem pelos limiares instaurando estes momentos de absurdidade criando referências entre o “cá” e o “lá”, interioridade-exterioridade, mundo dos vivos e mundo dos mortos.
As Mênades ou fúrias como forças que retornam no desmembramento de Orfeu, tinham a prerrogativa de fazer retornar as coisas a sua justa medida, criadas por Themis que etimologicamente vem de tithenai, significando o “estabelecimento de uma norma” (DANTAS apud BRANDÃO, 2015, p.128). As Mênades seriam a personificação de Nêmesis:
“Nêmesis indica um estado de ânimo que se ressente da falta de respeito pela lei e provém da mesma raiz (...) Para o grego a justiça responde a um moto inconsciente e se manifesta como uma paixão que sobe das vísceras e não se discute. Nêmesis é essa emoção. Como sentimento é uma ira justa e, como divindade, receberá o título de ‘irada’” (DANTAS apud ZOJA, 2015, p. 134).
A partir do Kosmos grego onde a realidade era a adequação ao metron, o desmembramento de Orfeu, reatualizou o mesmo destino de Zagreu e Dioniso, sendo característico deste deus o descomedimento e a transgressão do nomos. Assim Orfeu ao separar feminino do masculino, paradoxalmente realiza um trabalho contra natureza que transgride o próprio nomos dionisíaco, negando e retendo a consciência dionisíaca, ao mesmo tempo elevando-a a um status de consciência espiritual. Ao mesmo tempo em que Orfeu transgride (negação do pathos) também suspende este ao ter o mesmo fim do deus. O pathos negado retorna dentro daquilo que o negou, pois ao suspender a alma, negando o existencial empírico, esta retorna como seu desmembramento dentro dos próprios mistérios dionisíacos.
Sendo dissolvido, Orfeu se une ao deus tornando-se divino, ou seja, se “universalizando”, fazendo-o não somente Orfeu, mas o “Eu sou Baco”. Deste modo a alma cria sua própria perda, para universalizar-se e estar em sua presença ausente (dionisíaca) em toda e qualquer experiência, dissolvendo limiares onde a imagem mítica desse ato é o desmembramento. O desmembramento de Orfeu é a quarta determinação da alma que em status não natural, precisa ser perdida e tal perda só pode se dar quando Orfeu se sujeita a ser assimilado pela perda de referências do mundo dos mortos, Eurídice se perde na negação e suspensão, para reencontrar Orfeu a partir de sua interiorização, que é a própria dissolução na entrega as experiências tendo seu mesmo destino.
“A imagem destrói a si mesma dentro de si mesma. Suspende a si mesma. Nós não temos que fazer nada às imagens (...) O desmembramento dionisíaco só pode acontecer quando não é experienciado. Ele tem que ser um acontecimento lógico e não emocional (...) Devemos concluir também que esse telos dionisíaco é inerente em qualquer situação ou imagem arquetípica: o destino dionisíaco não vem de fora” (GIEGERICH, 2001, p. 219).
“Ao ocorrer no “mundo invertido” da alma, o desmembramento não é uma experiência extrovertida e nem introvertida, e sim “intensiva”: um refinamento interior, uma sublimação, uma mudança de estado lógico no qual você e o mundo estavam” (GIEGERICH, 2001, p. 210). Deste modo a violência do desmembramento pulverizada e destilada pela interiorização da alma converte-se na dissolução do sujeito em todo e qualquer momento de expressão da alma. O estado dionisíaco neste sentido não é somente pânico, ou restrito somente a corporalidade e seus prazeres, mas muito mais a dissolução a partir dos momentos de verdade da alma.
A alma imprime sobre si o autoabandono (Orphnos) para se constituir como perdida, pois somente na possibilidade de encontrá-la (retorno) instaura sua suspensão, sendo negada pela segunda vez no “olhar o invisível” (inexistente), criando as condições para que o invisível possa ser olhado e penetrado nos capturando por assim dizer. O mesmo invisível que é penetrado, agora penetra de “dentro” para “fora”, marcando o desmembramento como retorno do phatos negado (Mênades). A alma retorna sobre si como fúria (phatos)-lógica (desmembramento) que se explicita no “olhar do invisível” (cabeça oracular de Orfeu).
A verdade órfica instaura-se quando o retorno da alma se faz na passagem do “olhar o invisível” para o “olhar do invisível”, este invisível nos captura de “dentro” para “fora”. A alma suspendida é esta captura que vem de “dentro” e dissolve-se na própria expressão. A própria expressão, que é captura, por nos capturar é explícita-interiorização da alma no mundo de forma intensiva (em todo lugar e em lugar algum). A Sizígia de Orfeu e Eurídice é a constatação lógica de que expressão é captura que nos dissolve no mundo.
PALAVRAS FINAIS
Este artigo objetivou dar aos leitores, sejam eles junguianos ou não, uma perspectiva outra acerca da leitura de um mito e de que forma os mitos reatualizam perspectivas que moldam nosso olhar diante de nossas vivências. A realidade mítica retorna no período romântico, na psicanálise e outras abordagens que, em grande parte, mescla a filosofia e a estética na esperança de refundar as vivências da alma.
Pensar dialeticamente, ou em termos de sizígia significa não colocar uma imagem em detrimento de outra, como se ambas não pudessem coexistir simultaneamente, mas do contrário, se tornam dialéticas por serem contraditórias quando se colocam simultaneamente como identidade de identidade e identidade de diferença. “Ambos negam duplamente a si-mesmos no outro, e por isso se afirmam através do outro” (DANTAS, 2019, p. 235).
A sizígia de Orfeu e Eurídice é justamente a dialética onde a alma se dá a conhecer através de sua perda e suspensão a não-existência, para se constituir na interioridade virtual a toda e qualquer vivência dissolvendo os limiares e possibilitando que sejamos dissolvidos na própria expressão como captura. A receptividade não é, portanto, um vazio a ser preenchido, mas um vazio que se abre constantemente a pura expressão. Exprimir é um trabalho psicológico de entrega a uma expressão que captura. “Tal é a Noção, e tal é a vida lógica da alma. A Noção é captação ativa, penetração que mata (...) é um único ato ou atitude que em si mesmo se move em direções opostas sendo assim autocontraditório” (GIEGERICH, 2001, p. 194).
“Para nosso uso psicológico, começarei renunciando completamente à ideia de que, hoje, seja em geral possível a alguém formular uma proposta ‘verdadeira’ ou ‘correta’ sobre a essência da alma. O melhor que podemos produzir é uma expressão verdadeira” (SHAMDASANI apud JUNG, 2005, p. 106).
*Renato Santiago Bandola de Oliveira é psicólogo graduado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e aluno do curso de pós-graduação em Psicologia Analítica da Universidade José Rosário Vellano (UNIFENAS).
**Sônia Marchi de Carvalho é psiquiatra graduada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Analista Junguiana pelo Instituto Carl Gustav Jung de Zurique e orientadora do curso de pós-graduação em Psicologia Analítica da Universidade José Rosário Vellano (UNIFENAS).
NOTAS
[1] “Historicamente encontramos a anima nas sizígias divinas, nos pares divinos masculino-femininos. Estes mergulham por um lado, nas obscuridades da mitologia primitiva e, por outro, elevam-se nas especulações filosóficas do gnosticismo e da filosofia chinesa, onde o pai cosmogônico de conceitos é denominado yang (masculino) e yin (feminino). Podemos afirmar tranquilamente, acerca dessas sizígias, que elas são tão universais como a existência de homens e mulheres” (JUNG, 2000, p. 72). E também, na mesma obra: “Com estas identificações entramos no terreno das sizígias, ou seja, na união dos opostos, quando um deles jamais está separado do outro” (JUNG,2000, p. 113).
[2] GIALDRONI, M. Orfeu refletido ou a negação do mito? Cidade Universitária. São Paulo. V. 23. N. 66. 2009. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010340142009000200025&script=sci_arttext%20
[3] Brandão citando Platão (1987, p. 165) relata que as almas que se dirigiam ao Hades bebiam do rio Lete, a fim de esquecer suas existências terrenas. Os órficos, todavia, na esperança de escapar da reencarnação, evitavam o Lete e buscavam a fonte da Memória.
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