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Psicoterapia e Dependência Química


Atualmente é muito comum nos depararmos com o alto índice de internações voluntárias e involuntárias em que a dependência química é elencada como o mal contra o qual se deve lutar. A Dependência química na atualidade figura como a mais combatida endemia para a qual o Governo brasileiro destinou cerca de trinta e quatro milhões [1] de reais só este ano no sentido de viabilizar tratamentos adequados a partir das chamadas comunidades terapêuticas.

Uma comunidade terapêutica atende cerca de trinta ou mais internos dependendo da capacidade e dos recursos utilizados para tal. Hoje elas funcionam como o principal recurso para a recuperação do usuário de droga que pretende se recuperar do vício e retornar/construir uma existência mais plena e satisfatória. Antes de discorrer acerca da necessidade de tais instituições remeto que tais comunidades sempre existiram sem receber tal insígnia como os mosteiros dos monges budistas ou católicos. Em tais lugares a rotina é totalmente estruturada em atividades que visam a levar a sério um trabalho de interiorização religiosa que necessita de um ambiente protegido a partir de um isolamento e recolhimento.

Existem casos narrados pela história da filosofia onde o filósofo instruía seu discípulo a permanecer por uma semana em um buraco no chão cavado por ele mesmo com o sentido de facilitar ou possibilitar o processo de interiorização ou introversão. Desde a Grécia antiga o ocidente possui seu processo de desenvolvimento espiritual e de autoconhecimento, porém ainda rejeitado e jogado as traças. Na maioria dos casos o desenvolvimento espiritual da pessoa é cristalizado em uma forma de credo, o que provoca muitas vezes a desistência da recuperação. Por isso é necessário o lugar do profissional psicólogo nas instituições, para que o indivíduo seja ouvido em sua singularidade, pois o desenvolvimento espiritual é psicológico e possui sua singularidade e especificidade independente das confissões religiosas.

Aqui entendo confissão religiosa como um conjunto de dogmas compartilhados com uma comunidade que se fixa na instituição da religião. Porém, ao mesmo tempo em que a experiência religiosa pode ser encontrada de forma autêntica nas instituições o que funda tais experiências pode se manifestar dentro ou fora de tais dogmas. O que origina tais instituições no princípio era singular e natural, apresentando-se como uma experiência numinosa que transformava a percepção que o indivíduo tinha do mundo desenvolvendo a partir daí a pistis (harmonia ou lealdade) na fé e confiança, resultantes da mudança de consciência que daí resulta (JUNG, 1978).

 

Aceitação

A primeira coisa que precisamos saber para compreender o sentido por detrás das comunidades terapêuticas é que estas não garantem o processo de autoconhecimento necessário à recuperação do indivíduo a sua “condição primeira”. Quando nos referimos à palavra recuperar, partimos do princípio que havia ali uma forma de ser dada e pronta e que o indivíduo precisaria necessariamente retornar.

Idealizamos e muitas vezes projetamos uma forma de ser a priori para caber a pessoa que se insere na sociedade, pois não podemos esquecer que também somos institucionalizáveis. Outra conotação dúbia que a palavra recuperação trás é o resgate em que o indivíduo estaria submetido para que só a partir daí possa tomar as rédeas de sua vida. Logo, observamos duas formas de cristalização e pré-formatação da experiência de Si. O que há de comum nisso é que tanto a ideia de ser resgatado quanto a vivência da recuperação denota que havia ali alguém que de algum modo deve ter um valor melhor do que o indivíduo experimenta no presente.

Não significa que as instituições em seu processo de formatação da ideia de indivíduo estejam castrando a real singularidade das pessoas com dependência química, mas de algum modo esse processo de “recuperação” pode mascarar o real desenvolvimento psicológico que independe de nomenclaturas e estereótipos, pois é inerente a experiência humana onde tanto um burguês abastado quanto um trabalhador de fábrica tem acesso a tal experiência.

Aqui entramos na questão sobre como é possível gerar dentro das comunidades um espaço que possibilite a expressão da subjetividade descolada ou não condicionada a um rótulo que o obrigue a necessariamente pertencer a uma sociedade que já o estigmatizou como um “resgatado” ou “recuperado” denotando negativamente seu desvalor. Como possibilitar que aquele que se apresenta possa de algum modo voltar a se colocar como um indivíduo ou sentir-se integrado apesar de seu lugar de estigma?

Sob a perspectiva psicológica o desenvolvimento segue um padrão circular onde ora nos desorganizamos, ora nos organizamos sempre em uma manifestação mais complexa de personalidade o que Jung chamou de processo de individuação. Tal processo vai se constituindo na medida em que o sujeito passa a encarar a vida não como algo fora ou inautêntico, mas quando as principais questões existenciais começam a ganhar uma conotação genérica ou coletiva, mas que está diretamente ligada ao sujeito para consigo mesmo. Quando o sujeito começa a colocar-se em questão, ainda que de forma rudimentar podemos falar em uma realização do Si-mesmo (Self) como propôs Jung (1979) ou somente realização pessoal (VON FRANZ, 1999).

Para a psicologia o trabalho de auto realização é como que um instinto a ponto de alguns existencialistas dizerem que o Homem é um ser de propósito, se ele não dá um sentido a sua vida, a mesma não vale a pena ser vivida. Jung (2000) vai dizer que nós não somos donos tão somente das coisas que ocorrem fora de nós as quais chamamos natureza, mas muito mais, não somos donos de nossas próprias reações e de nossa vontade. "Hoje em dia todo mundo sabe que as pessoas "têm complexos". Mas oque não é bem conhecido e, embora teoricamente seja de maior importância, é que os complexos podem"ter-nos"" (par. 200).

Isso significa que não somente devemos temer o que vem de fora como guerra ou catástrofes naturais, mas muito mais nossas reações, desejos e vontades as quais desconhecemos. Se Freud revelou que temos um território desconhecido chamado inconsciente e que muitas vezes nos entrega aos impulsos mais hediondos, hoje sabemos que tais impulsos não só nos toma, mas nos destrói de dentro para fora se forem negligenciados. Como por exemplo, se um poeta deixa de poetizar jogando sua criatividade para debaixo do tapete, ele começara a se destruir de dentro para fora através principalmente de seu sentimento.

O prazer pelo prazer a satisfação pela satisfação acabam também por gerar um círculo que mantem a si mesmo independente da vontade humana – ou que assim se afirma. Desta forma Von Franz (1985) aconselha que o mal e o destrutivo devam ser temidos e o medo que protege não deve ser associado somente ao que esta fora, mas muito mais as forças psíquicas que nos dominam. Os humores, pensamentos, fixações, desejos e reações que fogem ao nosso controle. Isso significa que em termos experienciais não há um meio termo que nos diga até onde o ser humano pode destruir ou construir, ou quando algo construtivo passará a destruir e vice-versa.

Pensar na realidade a partir do medo pode ser muito elucidativo quando nos ajuda a limitar nossa liberdade frente ao comportamento do outro. O Mal não existe apenas nos filmes, mas tais monstros que vemos como fantasmas, para além de personagens são características da própria personalidade ou até de uma nação. Antigamente, nas culturas mais simples o mal advinha geralmente de uma alma que buscava sua vingança devido a um ressentimento, porém isso não muda muito nos dias atuais se pensarmos que esta alma que procura por “luz” seria na verdade uma culpa inconsciente por ter prejudicado outrem, porém a imagem, a potência psicológica da expiação ainda esta atuante.

Há uma sabedoria nos filmes de terror que visa a nos aterrorizar para uma dimensão da vida que é difícil olhar não por não conseguirmos reconhecer em nós, mas por representar a possibilidade de autodestruição ou auto degeneração. Na realidade do dia-a-dia vivemos por nos enganar e iludir de que certas coisas não acontecerão conosco, ou que somos coerentes com nosso auto conceito. Para os psicoterapeutas e artistas é uma grande questão procurar saber o tempo todo até que ponto nossas reações, pensamentos e sentimentos são condizentes com aquilo que acreditamos ser. Assumir que a condição do mal parte de dentro de nós como uma possibilidade de perder a identidade ou até mesmo de destruição do outro se esta não for reconhecida insere o indivíduo na condição do temor que consequentemente conduz a aceitação. Aceitar a ajuda do outro quando não se reconhece mais como dono de si é o primeiro passo para a apropriação da existência enquanto indivíduo. Esta é a principal forma de reconhecimento da necessidade de ajuda da pessoa com dependência química, o medo. O medo passa a ser o freio mas ao mesmo tempo atesta um desejo de viver.

Deste modo assumindo que impulsos psíquicos tem o mesmo poder que a ‘vontade de Deus’ ou da mãe natureza (bons e maus ou nem bons, nem maus) sobre nossa vontade, começa-se a entender o porquê é importante o retiro para lidar com as questões humanas mais prementes. O adicto tem como facticidade ou destino, procurar seriamente o sentido de sua existência, do contrário, está fadado à autodestruição. Independente de qual seja a droga a qual o indivíduo sucumbiu no uso a busca pela constante satisfação que nunca satisfaz é universal em todos os casos.

 

Vida e Morte

O que chamamos de normalidade é no mais das vezes uma dedução a respeito do comportamento de um grupo de pessoas que julgamos serem como nós ou partilharem de determinadas características. Tanto o auto conceito quanto o conceito que tenho do outro é diretamente dependente de vontades que fogem ao meu controle, que as desconheço, mas acredito conhecer. Desta forma toda a vida psicológica pode ser baseada na crença que o indivíduo possui diante de si mesmo que é sempre um palpite acerca do que é o mundo. As pessoas podem ter deixado de acreditar em algo transcendente, ou que viver uma vida mais plena seja impossível, porém a questão do-que-fazer com a realização não buscada, ou a mudança não realizada continua como uma constante inquietação psicológica. O que se colocou no lugar da busca por uma vida com significado?

É aqui que começamos efetivamente o tema da dependência química, ou muitas vezes, da incapacidade em assumir a perda do significado da vida. O mundo contemporâneo, globalizado, consumista e voltado para a tecnologia escolheu acreditar que tudo está em um constante progresso, indo para sabemos lá onde. Gostamos de acreditar que somos senhores não somente da nossa consciência, mas construímos nosso destino. Porém o sujeito moderno jogou para dentro do próprio estômago toda a responsabilidade por lidar com um enorme vazio que ele mesmo colocou a sua frente enquanto espaço de infinitas possibilidades (ZOJA, 2000). Desta forma o-que-fazer com a existência é uma questão que também envolve saber o-que-fazer com essa infinidade que permite tudo. Tornamo-nos senhores, porém servos de nossas próprias escolhas de um modo que nem mesmo temos consciência.

O indivíduo quando utiliza a droga acaba por reduzir a existência a um momento de prazer fazendo-se senhor de sua satisfação. Este desejo por satisfação nega a própria morte como uma possibilidade de dar um significado a sua existência. Só assumimos a vida quando aceitamos que não há uma finalidade em estar vivo. A utilização da droga transmuta a satisfação em insatisfação quando o indivíduo torna-se servo da constante busca por sentir-se vivo, que deve ser mantida por ele mesmo que se torna o carrasco de si. Carrasco, pois para ter a satisfação almejada precisa se curvar a negação da possibilidade de busca por um significado existencial independente da satisfação imediata. Se o indivíduo se colocou como o próprio senhor da satisfação ao mesmo tempo ele apostou que sem o seu controle ou busca, a vida sem um significado a priori não possui satisfações. Aqui ele acaba de produzir morte (finalizando a vida em um conceito) pré-definindo a vida antes de vivê-la. Aqui visualizamos de forma muito clara o característico egocentrismo inflexível do indivíduo com dependência química.

Deste modo onde a pessoa iria descortinar um vazio que nada garante e é por isso cheio de possibilidades e contra-possibilidades, inconscientemente castra todas as possibilidades vivendo/produzindo a finitude na própria vida em um enunciado muito simples: “A vida só é possível sob meu próprio controle das minhas satisfações, a vida não tem satisfação”. Por ver na vida sem significado pré definido a insatisfação, ele acaba por produzir uma satisfação cega, sem significado.

 

A Função do Temenos

Para os alquimistas medievais que foram os primeiros historicamente a se debruçarem sobre como se daria o processo de transformação da matéria, que visava a libertar o "espírito" da mesma. Viam o "recipiente hermeticamente fechado" como um microcosmo onde todo o processo de transformação se daria, recebendo as influências do macrocosmo, ou seja, da intenção e estado de espírito do artífex e sua soror mística. Isso mesmo! A transformação só era possível a partir do masculino e do feminino, uma relação de opostos.

O lugar do recolhimento no processo de recuperação é extremamente importante por colocar o indivíduo a sós consigo mesmo, onde “senhor” e “servo” podem se encontrar não como figuras externas a qual muitas vezes o adicto tenta se defender através da projeção, mas como traços internos personificados da própria atuação do indivíduo no mundo. O problema é que o caminho para tal introversão da energia é deveras complexo, pois envolve um trabalho psicoterapêutico de devolução das projeções e espelhamento das defesas e resistências, para somente aí a pessoa estar a sós consigo mesma.

Neste instante é que surge a possibilidade de um Temenos [2] , dentro deste “recinto” psicologicamente construído, uma relação dialética entre opostos, absolutamente tudo que chegar a percepção do indivíduo deverá ser tratado com uma atenção cuidadosa e respeito. Dentro do processo de interiorização o espaço da infinitude é apropriado pelo sujeito na consideração de que tudo que lhe ocorre (pensamentos, fantasias e sonhos) é uma parte desconhecida de si, mas que ao mesmo tempo descreve a si, precisando ser refletido e trazido a “superfície”.

O processo de abstinência não acontece somente no plano fisiológico, mas também no plano psicológico quando as defesas não significam somente um pretexto para lançar mão do uso da substância, isso seria uma leitura muito superficial. As defesas que o sujeito lança mão irão cada vez mais, através do processo psicoterapêutico, ganhando novos contornos onde a droga passa a ser um substituto externo para negar um estado interior. Isso não significa que após a elucidação de determinadas questões o sujeito estará livre da dependência da substância, mas que terá mais recursos para compreender o que o motiva na busca por uma satisfação constantemente insatisfeita, podendo lançar mão da atitude mais adequada.

Aqui entramos na grande questão que atinge toda a sociedade, em que nada garante até onde o sofrimento pode destruir. Lançamos mão de um punhado de artifícios no consumo de livros de auto ajuda e psicofármacos cada vez mais complexos e potentes no intuito de preservar a vida, postergar a morte ou ludibriar nossas questões mais íntimas. Tais questões não pertencem somente às pessoas com dependência química, mas a todo ser humano. Simplesmente não há garantias! No final é apenas o sujeito consigo mesmo em sua existência onde o que vai atestar sua vontade é a disposição em sentir que ainda consegue dar um significado a vida. Assim escolhemos também acreditar que apesar do sofrimento, não estamos sozinhos, mas antes é preciso se lançar!

 

REFERÊNCIAS

JUNG, Carl Gustav. Aion: estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo. Petrópolis. Vozes. 2008.

______________. A Natureza da Psique. Petrópolis. Vozes.

______________. Psicological Types. Princeton University. Princeton. 1979.

SAMUELS, A.; SHORTER, B.; PLAUT, A. Dicionário Crítico de Análise Junguiana. Rio de Janeiro. Imago. 1986.

VON FRANZ, Marie-Louise. Psicoterapia. São Paulo. Paulus. 1999.

ZOJA, Luigi. História da Arrogância. São Paulo. Axis Mundi. 2000.

NOTAS

[1] http://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/dependencia-quimica/sociedade-e-as-drogas/recursos-publicos-comunidades-terapeuticas-religiao-medicos.aspx

[2] Palavre grega que significa um lugar sagrado e protegido originariamente círculos traçados no chão; psicologicamente é utilizada como metáfora para descrever área psiquicamente protegida de um recinto analítico, dentro da qual a relação paciente-terapeuta se constrói baseada em um respeito mútuo pelos processos que ocorrem em seus inconscientes com sigilo, compromisso e um sentido de confiança no senso ético um do outro (SAMUELS, SHORTER & PLAUT, 1986).


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