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O Casamento como Rapto do Desejo


É muito comum ainda hoje, nos discursos sociais – e por isso irrefletidos - o casamento ser considerado o único destino feliz para a mulher e também para muitos homens. Há a ideia de que depois dos trinta anos se deve demonstrar certa realização profissional que acompanha o encontro de um “bom partido”.

A palavra que descreve este ideário seria o consumo do “pacote de serviços” que as pessoas adquirem em canais por assinatura. Ou seja, uma felicidade pasteurizada onde qualquer forma de organização da vida se torna secundária e os almoços familiares e finais de ano acabam por celebrar mais o fracasso do que o nascimento.

Desta forma a felicidade pasteurizada acabou dominando a esfera íntima que caracteriza a vida de um casal que optou pelo matrimônio, digo que optou, pois em nossos tempos o casamento se tornou uma experiência extremamente diversa e plural. Ainda assim, convivemos de um lado com casais mais liberais, até casais mais tradicionais e conservadores.

O conservadorismo convive com o inovacionismo, em que experiências plurais pululam nas intimidades, independente dos padrões sociais. Porém o que não se vê é o diálogo entre as pessoas a respeito de tal tema. A intimidade tornou-se totalmente alheia ao terreno público a ponto dos discursos de casamento não se alterarem, muito menos os ritos.

O rito é uma experiência ancestral que remonta a certos símbolos que visam atualizar a experiência arquetípica da união entre duas pessoas. Quando participamos de um ritual, estamos na verdade executando atitudes as quais visam nos conectar novamente a um estado de espírito, no caso em específico beber do sentimento de união autêntica com o outro.

Porém, no casamento, o mais central é a experiência de Eros (amor) que se manifesta, nas palavras de Recalcati (2016) como a preservação do “amor que quer durar”. Há muito menos um Phatos (afetação) envolvido do que uma “atenção cuidadosa” ao vínculo que se estabelece com o Outro.

Há concomitantemente ao discurso conjugal – que se torna rígido e impróprio – uma hipervalorização do desejo sexual que se tornou a antítese da relação amorosa. Assim nossa cultura cindiu amor de sexualidade, sexualidade se associa a consumo, amor se associa a sofrimento e perda da liberdade. Casar é para conservadores, desejar é para inovadores arrojados.

Porém o casamento tradicional insere nesta relação à ideia de promessa. Para justificar o “amor que quer durar” há que se realizar mais do que uma promessa para o cônjuge, uma promessa para a sociedade. Quando o casal possui certa maturidade psicológica fica fácil separar a intimidade das expectativas sociais, porém em muitos casos não é isso que ocorre.

Recalcati (2016) propõe que: “A ridicularização do phatos amoroso voltado para o absoluto, da promessa dos amantes de que seja ‘para sempre’, não nasce apenas do desencanto cínico, mas também e, sobretudo do imperativo social do Novo (...)”. Não podemos deixar de estabelecer aqui um paralelo com o mercado de consumo onde sempre temos que almejar ao novo, onde se cria um tédio crescente por repetir o antigo em cada experiência que se propõe nova como compensação a isso.

Resumindo, o casamento instituído tende a petrificar a vida emocional e amorosa do casal quando os mesmos não passaram por certas experiências hedonísticas. Desta forma há a identificação do desejo com a insaciabilidade do novo. Desejar é não se envolver de forma compromissada ficando a pessoa descolada das responsabilidades que a relação impõe. É mais um desejo de descoberta inconsciente, do que um movimento em direção ao Outro.

Assim o autor acima referido nomeia de hiper-hedonismo , ou libertinagem essa aspiração ao novo. Porém, não acho que isso tenha relação com o desejo, mas com a noção infantil de liberdade preconizada pela nossa cultura. Muitas vezes o casamento instituído pela religião não dá conta da experiência insuficiente da pluralidade do desejo.

Principalmente quando se trata de um cristianismo que historicamente negou a sexualidade na figura de Maria Madalena como uma sexualidade arrependida. Deste modo a única forma que a mulher tem de experimentar sua sexualidade, ou o fato de se fazer desejada pelo outro a ponto de desenvolver uma noção de auto estima é através de suas experiências pessoais. Na religião só pode ser arrependida ou mãe virgem.

Até mesmo na simbólica judaica Eva é parte de Adão, assim a mulher quando se casa na igreja precisa que o pai entregue sua mão em um gesto simbólico, para o marido que será considerado o novo “dono” desta mulher. Seu desejo continua alienado, assim como sua experiência dionisíaca não-vivida.

Nas sociedade dos Camaiurás, os ritos de iniciação sexual (Kwara Angap) são comemorados pelas mulheres que devem esculpir um pênis de madeira e levar até o centro da aldeia para chamar os homens para ter relações sexuais, a isto se lança o “jogo” erótico onde os homens devem capturar o “pênis” lançado de mão em mão entre as mulheres com a intenção de fugir dos homens[1].

Porém, na cultura ocidental cristã não há uma forma pedagógica de se ensinar a lidar com o desejo, sendo este o “calcanhar de Aquiles” do ocidente. A mulher deve se lançar sozinha na aprendizagem da própria sexualidade, deve aprender o “jogo erótico” sem correr o risco de ficar “mal falada” por uma cultura onde a garota de programa é uma figura sombria.

Deste modo o machismo residual de nossa cultura significa a própria incapacidade do homem em se apropriar também de sua potência masculina, que é em última análise um impulso a ordenação do caos emocional. O machismo é uma psicologia infantil, de um menino que não se apropriou do desejo!

Assim, separar sexo de afeto é também banir para fora da experiência masculina àqueles problemas que irão forçar o homem a utilizar sua razão. Assim, sexo sem afeto é poder sem razão, um autoritarismo. Deste modo a psicologia feminina se move em um terreno – e a psicologia masculina se move junto – onde deve abrir espaços para exercer sua liberdade sexual e ao mesmo tempo lidar com uma cultura que cinde, desejo de amor.

 

Consequências

As consequências da repressão da Anima[2] como estrutura cultural do Cristianismo, será a castração da potência masculina dentro do vínculo amoroso onde o homem se torna um filho da esposa (Virgem Maria) e a mulher torna-se frígida e arrependida.

Frígida por se identificar com o único símbolo feminino respeitável (Maria) e arrependida pelo seu desejo – apropriação da liberdade sexual. Este só pode ser realizado fora do casamento devido à semelhança do marido com o pai Salvador.

Deste modo a iniciação sexual da mulher e do homem tornou-se alienada e nada pedagógica. O homem sexual ou é o primo ou outra figura externa a relação amorosa. A liberdade sexual feminina, por ser reprimida acaba por produzir a chamada gravidez indesejada, onde esta irá experimentar a ascensão de sua responsabilidade.

 

O Rapto de Perséfone

Deste modo quando a mulher não se permite ou é castrada em sua descoberta e liberdade sexuais, acaba por inconscientemente “transgredir-para-se-responsabilizar”. Podemos observar esta experiência no mito de Coré/Perséfone.

Coré era filha de Deméter e seu irmão Zeus, a grande Deusa da vegetação que regia o plantio e a colheita nas fases e ciclos naturais. Coré é raptada em um de seus passeios pelo Deus do submundo, Hades – que aqui podemos comparar ao homem misterioso – que irá “revelar” um “outro mundo” a moça que se tornará a rainha do submundo ao se casar com Hades. Após isso Deméter se entristece e o mundo terreno cai em esterilidade da terra e invernos prolongados. Ao procurar pela filha, descobre seu paradeiro e pede a Hermes que a acompanhe na busca por Coré. Ao encontrar Coré, Deméter acaba tendo que negociar com o Hades donde a mesma ficaria com a mãe na primavera e no verão e no restante com o deus do submundo.

Este mito ilustra o arquétipo do segundo nascimento feminino, donde a menina se torna mulher. Porém, na antiguidade esta experiência era um rito a deusa deméter, ou seja, fazia parte o rapto da menina dentro de um contexto cosmogônico, o que não vemos dentro do cristianismo. Assim muitas vezes o amante é o homem que inicia a mulher em sua descoberta da liberdade sexual.

Para que o casamento tenha seu sentido primeiro considerado como uma união entre marido e mulher através de uma promessa legitimada por uma instância superiora ao ego de cada um, dentro de nossa cultura, o aconselhamento sexual e psicoterapêutico será o lugar onde tal experiência receberá sua validação.

É comum na prática clínica que muitas vezes a menina se descubra mulher, a mulher se descubra infeliz, ou se descubra feliz em um casamento informal. É muito comum também vermos homens que se descobrem impotentes, mas que se sentem sobrecarregados pelas exigências culturais da figura do salvador. Assumir a relação de ajuda com o Outro, significa que assumimos que é necessário “Coré se perder”, representando assim, a ascensão de nossa ingenuidade e descontrole diante dos afetos do inconsciente (Hades), ou de nossas atrações amorosas não reconhecidas.

À mulher, permitir-se se entregar a sexualidade é também um descontrole, um rapto. Um permitir-se descer até onde for possível em seus afetos inconscientes experimentando-os. Sem a vivência e integração do símbolo de Perséfone não há casamento possível. Assim, “o amor que quer durar” deve antes de tudo, ser fruto de uma liberdade do desejo, do Phatos absoluto, que por ser livre escolhe escolher a novidade sempre contida no mesmo, como se fosse à primeira vez. Não há regras, pois no fim o que mais importa é a construção da relação, onde cada uma tem sua singularidade dentro de um continente que permita a reflexão dos afetos.

 

REFERÊNCIAS

JUNG, Carl G. Memórias Sonhos Reflexões. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. 1963.

RECALCATI Massimo. Não é mais como antes: Elogio do perdão na vida amorosa. Rio de Janeiro. Zahar. 2016.

SALLES, Carlos Alberto Corrêa; MELLO, Jussara Maria de Fátima César e. Sexualidade e Individuação. São Paulo. Vetor. 2007. (Anima Mundi).

[1] (SALLES & MELLO, 2007, p. 130).

[2][2] Anima é uma palavra latina que significa sopro de vida, alma, influxo vital, que em termos simbólicos pode vir “tanto de cima quanto de baixo”. No homem esta natureza represente a qualidade de seus humores e afetos. “Personificação da natureza feminina do inconsciente do homem [o não-eu] e da natureza masculina do inconsciente da mulher (...) Ele [o homem] domina a vida com o entendimento, mas a vida vive nele através da anima” (JUNG, 1963, p. 352).


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