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O Amor de Clarice


Este conto é sobre a vida de Ana, uma mulher que há muito se dedica aos afazeres domésticos, tornando estes, tão exacerbados a ponto de Ana tornar-se com o tempo uma mulher extremamente detalhista no que se diz respeito aos inconvenientes do lar. No decorrer da história, percebe-se o quanto Ana fizera de seu mundo, algo metódico, rotineiro e seguro. A maternidade e o lugar de esposa davam a ela como que certo poder diante da sua vida, porém um poder quase que ilusório, se assemelhando mais a uma necessidade de segurança, a qual Ana via certa beleza. Clarice Lispector consegue de forma muito artística descrever a desesperada fuga de Ana quando escreve: “Crescia a água do tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa de comidas...”.

Enfim Ana conseguira apagar de todo o seu cotidiano a íntima desordem, ou aquele fugaz momento da incerteza, e surpresa da vida. Vivia o aspecto feminino mais aceito socialmente o da esposa mãe, se tornara Deméter. O curioso é que poucas vezes o marido entra em cena. A tarde tornara-se perigosa para Ana, já que era o único momento vazio de sua existência até então seguramente limitada.

Enfim, o conto desenrola a partir do momento que Ana, quando entra no bonde, para retornar para seu lar, avista um cego mascando chiclete e sua percepção é guiada para o mesmo, nesse momento Ana é tomada por um grande espanto, um cego enfim se destacará dos outros, mas afinal, porque um cego[1]?

Não se pode deixar de notar a expressão que autora usa, em que escreve que: “Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não se vê”. É esse o momento que Ana vislumbra o que não se vê, aquele momento que se sente, se deduz, mas não se vê, o reino no inconsciente, assim ela é convidada, ou tragada para uma breve viagem, uma viagem ao seu interior mais ctônico. Há uma certa mistura de piedade e espanto, quando vislumbra o sério e o ridículo, o seu ridículo de quem pode mas se nega a ver.

Nesse momento Ana, percebe coisas que em seu quotidiano nunca haveria percebido, momentos fugazes e até então imperceptíveis tomam uma característica toda singular, “... a rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima quando a tricotara.”. O cego a faz enxergar por cima e através de sua condição de mulher mãe-dona de casa, é como estivesse entrado em contato com seus mistérios mais íntimos. Fazendo-a por um instante não ver mais sentido em suas tarefas rotineiras, um breve momento de nada.

E para concretizar o evento tão “coincidente”, Ana perde-se onde deveria como mãe parar e descer do bonde, será porque naquele breve instante não era tão mãe assim? Enfim, Ana desce noutro ponto, onde o lugar é desconhecido para a mesma, sincronisticamente[2] falando, sua dimensão estranha a si mesma.

Ana se aproxima e re-conhece o Jardim Botânico, entra, e percebendo seus detalhes surpreendentes senta-se em um banco e fica horas ali, parada, em silêncio. Tudo por um momento se tornava cru, sombrio e belo. “As pequenas flores espalhadas na relva, não lhe pareciam amarelas e rosadas, mas cor de mau ouro e escarlate, a decomposição era profunda, perfumada...”. A autora descreve que a moral do jardim era outra, não diz que moral, apenas que era outra que não a de Ana.

Por um momento Ana lembra-se de seus filhos e é tomada por uma tremenda culpa que a faz sair daquele lugar em direção a sua casa. Mas, Ana tomara consciência de um “mal”, sabia que existia um mundo além do seu, com um grande mistério, que na verdade ela intuía o que poderia ser, mas não podia controlar, um momento de insegurança, de surpresa, uma brecha onde ela pode respirar liberdade e medo, beleza e nojo.

Chegando em casa abraça seu filho como se fosse um último abraço, as coisas não são tão certas ou previsíveis assim. Quando se apercebe que a piedade do cego era de leão, e como bem o sabemos o leão é simbolizado no zodíaco e na cultura popular como o animal rei, ou orgulhoso, egocêntrico, ou seja, sua piedade era um tanto prepotente, “superior”. Como a autora diz, “Ah! Era mais fácil ser um santo que uma pessoa!”.

Clarice ainda descreve que Ana por um momento se via diante da visão de uma ostra, não havendo como não olhá-la, a ostra (que produz a pérola) personificando o seu feminino[3] até então ignorado, seu outro lado mulher. No final, quando fica de frente com seu medo, abraça o marido dizendo que não queria que nada lhe acontecesse, onde o mesmo lhe responde: “Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro...”. Nessa fala do marido percebe-se o quanto Ana realmente precisava da incerteza, precisava do descontrole.

Clarice neste conto nos mostra o caráter fugaz e inesperado do encontro de Ana com ela mesma. É como se para amar, ou perceber suas relações, tivesse que sair delas por um momento, de seu comportamento habitualizado de mãe e dona de casa. Não vemos muita coisa diferente em nosso cotidiano, onde muitas mulheres se submetem a somente essa dimensão de sua vida afetiva, acabando por tornar seu casamento uma prisão.

Acredito que Ana, passa a ter uma experiência interior que lhe mostra de certa forma, que a vida tem sua dimensão de incerteza, de descontrole e de desejos, isso a faz rica.

Emílio Romero (2003) em seu livro: "As Formas da Sensibilidade", nos mostra que uma das grandes fontes de desentendimento no matrimonio, é justamente a mulher se identificar e se cristalizar em sua maternidade, fazendo o seu casamento se sustentar pelos filhos. Por isso acredito que esses momentos fugazes de falta de sentido, significa a falta de sentido às vezes no casamento.

Portanto Clarice mostra com muita maestria poética, o papel de tais momentos dentro do casamento e da vida, o amor se aprende nesses instantes sem sentido, na incerteza do amanhã e de nossas relações. Isso nos introduz no momento presente, ou – como chamavam os gregos – Kairós, o “eterno enquanto dure”.

REFERÊNCIAS

[1] O cego considerado com um símbolo do inconsciente de Ana, personifica um arquétipo daquele que tem o privilégio de conhecer sua realidade profunda, secreta e proibida. É o vidente, aquele que vê com o terceiro olho, o olho interior. “O cego evoca a imagem daquele que vê outra coisa, com outros olhos, de um outro mundo: é considerado menos um enfermo do que um forasteiro, um estranho.” (CHEVALIER & GHUEERBRANT, 2006, p. 218).

[2] Sincronicidade: “Foi definida por Jung como “princípio de conexão acausal”, uma conexão essencialmente misteriosa entre a psique pessoal e o mundo material, baseada no fato de que no fundo são apenas diferentes formas de energia.” (SHARP, 1991, p. 148).

[3] A pérola simboliza o aspecto criativo da ostra, sua criação, ou um principio psíquico criativo, a mulher que se inventa. (CHEVALIER & GHUEERBRANT, 2006, p. 711).


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